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A LIMPEZA DEBAIXO DO SOFÁ
Era uma vez um projecto sólido, amplo, confortável, recheado de sonhos macios e quentes. Talvez sejam levados a pensar que estou a falar de um sofá, tipo estrutura-enchimento-forro, mas não. Não era um sofá nem qualquer peça de mobiliário - era uma casa, aquilo a que alguns chamam "lar". Aí se instalou, um dia, um casal de traças. O casal, como todos os casais felizes a sério, mobilou o seu ninho e teve filhos como quem suspira de amor. É claro que também tiveram os brindes inerentes a estas maravilhosas aquisições, mas isso não vem agora a propósito.
Era uma vez um sofá que poderia ilustrar um conto infantil. De cores brilhantes e linhas perfeitas, harmoniosamente colocado na sala de estar ampla e luminosa da família de traças. Com o tempo e o uso, digo, consumo, sucedeu o inevitável ao distinto sofá: adoeceu, quebrou e, num suspiro, cedeu de vez.
Era uma vez uma empregada de limpeza competentíssima. Certa manhã, muito cedo, irrompeu pela sala da casa onde viviam felizes as traças, abriu totalmente os cortinados e escancarou as janelas com tal violência que acordou toda a família. Sem dó nem misericórdia, atirou com os restos mortais do sofá para dentro de um saco de lixo gigante e aspirou vigorosamente o chão. As pequenitas gritaram por socorro, mas o aspirador abafou-as e calou-as de vez. Quando a empregada saiu, suspirando de alívio, apesar de vazia e só, a sala ficou mais ampla e luminosa.
Era uma vez alguém que queria escrever sobre o que existia debaixo de um sofá. Entrou pé-ante-pé na sala onde outrora suspiravam felizes as traças roendo o sofá e olhou em redor. Tarde demais. Recuou, fechou a porta devagar e, como costumava fazer quando se sentia invadir pelas dúvidas, caminhou até à praia, mordiscando um pau de canela.
Era uma vez uma maçã, perdida nas franjas húmidas e salgadas de um areal. Alguém a terá encontrado, uma tarde, enquanto caminhava, tentando imaginar o que existiria debaixo de um vulgar sofá. Talvez um motivo para uma nova história? Aproximou a maçã do seu rosto, tentando sentir-lhe o aroma e ouviu-a suspirar. Estranhou, mas observou-a com a inocência de uma criança curiosa. Rodou-a na sua mão e admirou-lhe a pele lisa e dourada. Fitaram-se longamente olhos-na-pele ao pôr-do-sol e sorriram - lábios de alguém no brilho da maçã. Trocaram beijos com sabor a fruta e canela. Imaginam o resto da história?
Era uma vez uma maçã. Não quero dizer com isto que alguém tenha ingerido a maçã. É possível que tenha acontecido o inverso. Aliás, tudo é possível. E talvez sejam levados a pensar que estou a falar de um fruto, mas não. Esta é a história de um casal de traças a brincar, mas felizes a sério. O que existe debaixo do sofá? Não tem importância, desde que haja um final feliz.



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